D. CARLOS I E A OCEANOGRAFIA, texto com referência aos Açores e à sua riqueza naval desconhecida da maior parte da população açoriana
por Maria Manuela da Câmara Falcão
No século XIX, além de Portugal e do Mónaco, os países industrializados, como a França, a Inglaterra e os Estados Unidos da América, começaram a interessar-se pelo estudo da Oceanografia, apoiando-se no progresso da tecnologia. É de recordar que muito contribuíram, entre outros, o aparecimento do navio a vapor, cabos de aço, sondas para recolha de amostras, termómetros de inversão para medir a temperatura da água a diversas profundidades.
Com o desenvolvimento da tecnologia, o lançamento dos cabos submarinos para estabelecer as ligações telegráficas intercontinentais e a constatação da escassez de reservas de peixe, desabrochou a motivação pelas grandes expedições oceanográficas.
Em 1 de Setembro de 1896, nasceu a Oceanografia portuguesa, quando D. Carlos iniciou, a bordo do seu primeiro iate “Amélia”, uma série de campanhas ao longo da costa atlântica de Portugal que se prolongariam até 1906.
Além do interesse científico, D.Carlos preocupou-se também em estudar os recursos marinhos vivos da costa portuguesa, tendo por objectivo maximizar o rendimento da indústria e do comércio da pesca. Esta era uma das mais significativas actividades económicas do país que, atravessando uma crise política e financeira graves, herdara para governar. Em 1898, dedicou-se, em especial, à investigação sobre pescas marítimas, tendo inclusivamente publicado o seu estudo sobre “A Pesca do Atum no Algarve”, editado pela Imprensa Nacional, Lisboa, em 1899.
A vocação precoce de D.Carlos pela Oceanografia foi incentivada por personalidades de renome internacional, entre as quais, o príncipe Alberto do Mónaco, que adiante se falará mais detalhadamente, Júlio Verne e a equipa notável de cientistas franceses do navio oceanográfico “Travailleur”.
Aos 19 anos, D. Carlos tinha lido todos os trabalhos de investigação oceanográfica dessa famosa equipa francesa, constituída pelo marquês de Folin, Léon Vaillant, Edmond Perrier, Alphonse Milne Edwards, Antoine Marion e Paul Fischer, e tivera a oportunidade de a conhecer pessoalmente numa recepção no paço real da Ajuda, aquando da terceira campanha do “Travailleur” nas águas costeiras portuguesas, no Verão de 1882.
Conta-se que sendo ainda um jovem adolescente conhecera também o escritor francês, Júlio Verne, quando este, já rico e famoso, realizou, em 1876, uma série de viagens pelo Mundo, a bordo do seu iate que fez escala em Lisboa.
Durante essa escala na capital, proporcionou-se uma recepção a Júlio Verne, no paço real da Ajuda. Assim, D. Carlos teve a oportunidade de ouvir deleitado e trocar impressões com Júlio Verne, o autor de uma das suas obras preferidas, “As Vinte Mil Léguas Submarinas”. Essa obra marcou-o profundamente, de tal forma que veio a dar o nome de “Nautilus” à sua primeira embarcação à vela que recebera como presente do rei D. Luís I, seu pai, e despontou nele a motivação pelo estudo dos abismos oceânicos da costa portuguesa, como veio a efectuar posteriormente ao largo de Setúbal. É de recordar, neste contexto, o facto pouco divulgado sobre a estadia de Júlio Verne na casa de uma ilustre família portuguesa, no Dafundo. Aí, escreveu precisamente “As Vinte Mil Léguas Submarinas”, em 1870, tendo por horizonte a foz do Tejo. A sua anfitriã perguntou-lhe um dia, após ter lido a obra já concluída, porque razão não fizera nenhuma alusão à casa, onde se inspirara para escrever. Júlio Verne respondeu-lhe que lesse com mais atenção na medida em que a mesa de camilha da sua sala de estar, onde costumava escrever, não fora esquecida, sendo referida na obra como peça de mobiliário do submarino “Nautilus”.
D. Carlos, além dessa pequena embarcação à vela, berço dos seus sonhos de jovem navegador, o referido “Nautilus”, teve, mais tarde, sucessivamente quatro iates. Os três primeiros eram à vela e todos moviam-se por máquinas a vapor, tendo sido devidamente adaptados para as campanhas oceanográficas. Chamaram-se “Amélia” em homenagem à rainha, sua consorte.
O “Amélia I” era pequeno e pouco estável; media 34 metros e deslocava 147 toneladas à velocidade de 9 a 10 nós. O “Amélia II” fez as campanhas de 1897 a 1898; era um pouco maior, media 45 metros e deslocava 301 toneladas à velocidade de 10 a 11 nós. O “Amélia III” era grande e estável, tendo permitido as campanhas oceanográficas mais prolongadas, as de 1899 a 1901. Dispunha inclusivamente de um laboratório a bordo. Media 55 metros e deslocava 650 toneladas à velocidade de 12 a 14 nós. O último, o “Amélia IV”, sem velas mas o maior, mais luxuoso e rápido de todos, realizou não só as visitas régias, como aos Açores e à Madeira, como também as campanhas de 1901 a 1907. Media 70 metros, deslocava 1370 toneladas à velocidade de 15 nós. Na sua categoria estava muito próximo do famoso “Princesse Alice II” do príncipe Alberto de Mónaco, medindo esse iate 73 metros, deslocando 1394 toneladas e tendo efectuado as campanhas oceanográficas de 1898 a 1910.
Sempre que partia para as campanhas oceanográficas, D.Carlos sentia-se imensamente feliz ao leme desses iates “Amélia”, sulcando as águas indómitas do Atlântico para desvendar, com a persistência própria de um cientista, os segredos profundos do oceano. Então, era o rei digno da gesta audaciosa de um povo de navegadores, granjeando também para Portugal o pioneirismo da Oceanografia.
A fim de melhor realizar as expedições científicas, D.Carlos adaptou os seus iates. Por exemplo, no “Amélia III” mandou transformar a sala de fumo em laboratório, pintado de branco e bem equipado. A bordo iam também instrumentos de precisão para os seus estudos oceanográficos como, entre outros, termómetros de inversão “Negretti & Zambra”, densímetros e flutuadores derivantes para estudar as correntes marítimas. Os iates iam munidos de armamento, como peças de artilharia, na medida em que nessa época as expedições longínquas eram arriscadas, de espingardas de caça para obtenção de espécies ornitológicas e de canhões lança-arpão para captura de cetáceos.
A costa portuguesa é efectivamente uma das mais atractivas para ser estudada, devido à presença de canhões submarinos profundos a poucas milhas da terra. Esta característica torna-a quase única na Europa. D.Carlos estudou minuciosamente a topografia desses canhões, respectivos sedimentos e temperaturas, como revela a exactidão das suas notas e trabalhos escritos. O Rei é inclusivamente o autor da primeira carta batimétrica da zona do canhão de Setúbal, à escala 1/100 000, completada inclusivamente com a referência às espécies locais por ele estudadas.
Em 1898, D.Carlos incentivou a criação do Museu Oceanográfico, no Dafundo, junto ao rio Tejo e perto de Lisboa, tendo sido completado pelo Aquário Vasco da Gama, sendo ambos dos primeiros criados no Mundo. Além da exposição de espécies marinhas vivas no referido Aquário, o Museu foi enriquecido com o legado do Rei, ou seja, toda a sua colecção oceanográfica, bibliografia, documentação diversa incluindo trabalhos escritos sobre cartografia, hidrografia e ornitologia, apontamentos, notas pessoais, inventariação das espécies marinhas portuguesas, preparações microscópicas e instrumentação utilizada.
Com o beneplácito régio, é constituída a Sociedade Portuguesa de Ciências Naturais, em 1907. No ano seguinte, em 1908, é fundada a Estação de Biologia Marítima de Lisboa, assim como uma Comissão de Oceanografia.
Através de “um saber de experiência feito” ao longo de uma década de expedições, D. Carlos captou inteligentemente a percepção da pluri-interdisciplinaridade dos estudos da nova ciência, a Oceanografia, ponto de vista ainda hoje partilhado pela comunidade científica internacional. O legado de D.Carlos, exposto publicamente no Museu do Dafundo, é o testemunho mais fidedigno do pioneirismo de Portugal relativamente à Oceanografia.
CARLOS I DE PORTUGAL E ALBERTO I DE MÓNACO A PAIXÃO PELO ATLÂNTICO
Em 1873, o príncipe soberano, Alberto I de Mónaco, com 25 anos de idade, tinha adquirido o seu primeiro iate “Hirondelle”. Nesse mesmo ano, fez escala em Lisboa e visitou a família real portuguesa, tendo conhecido o príncipe D. Carlos, com 10 anos, e o infante D. Afonso, seu irmão, com 8 anos. Ambos eram crianças e excelentes ouvintes das odisseias do príncipe de Mónaco.
Em 1879, quando o príncipe Alberto de Mónaco fez outra escala em Lisboa, teve a oportunidade de trocar impressões sobre os seus estudos oceanográficos com D. Carlos, que tinha 16 anos, revelava um entusiasmo por tudo o que fosse relacionado com o mar, a par do conhecimento excelente de várias línguas estrangeiras, sendo fluente em francês e inglês, das ciências naturais e do talento para a pintura e desenho. Durante essa escala, o jovem D.Carlos reproduziu correctamente a “crayon” o iate “Hirondelle” ancorado no Tejo.
Em 1885, o príncipe Alberto de Mónaco iniciou as suas campanhas oceanográficas que se realizaram ao longo de trinta anos. Sulcou frequentemente as águas do Mediterrâneo ao Atlântico, a bordo dos seus sucessivos quatro iates designados respectivamente “Hirondelle”, “Princesse Alice”, “Princesse Alice II” e “Hirondelle II”. Estes foram também convenientemente adaptados, incluindo salas transformadas em laboratórios, bem apetrechados com instrumentos específicos, os mais modernos de então, que lhe permitiram assegurar o prestígio internacional das suas investigações.
Em 1894, por ocasião de uma campanha oceanográfica com o seu segundo iate o “Princesse Alice”, o príncipe Alberto de Mónaco, acompanhado pela mulher, a princesa Alice, fez escala em Lisboa e visitou o já então rei D. Carlos I e a sua mulher, a rainha D. Amélia, que se encontravam no palácio da Pena, em Sintra.
Desse encontro entre duas pessoas admiráveis pela sua inteligência e sensibilidade, nasceu uma grande amizade, tendo em comum a paixão pelo mar, desporto, fotografia, ciência e tecnologia. Essa empatia foi reforçada, ao longo dos anos, através de uma troca de correspondência assídua entre D. Carlos e o Príncipe Alberto, informando reciprocamente sobre os progressos das respectivas investigações, nomeadamente no oceano Atlântico.
Com o decorrer do tempo, o rigor e a qualidade científica dos estudos de D. Carlos sobre a biodiversidade marinha, as correntes do litoral e as cartas batimétricas do “mar português”, permitiram-lhe o reconhecimento e a designação de “Monarca Sábio” pelo príncipe Alberto de Mónaco. É de recordar que o príncipe de Mónaco efectuou doze campanhas no Mar dos Açores que tanto o fascinava, numa perspectiva científica, pela extraordinária variedade e riqueza da fauna piscatória do Arquipélago açoriano. Por ali, navegou a bordo dos seus iates “Hirondelle” e, mais tarde, “Princesse Alice”, permitindo-lhe o conhecimento global da biodiversidade marinha, inclusive dos seus aspectos biogeográficos. Neste contexto, é de salientar a sua descoberta do banco “Princesse Alice”, a sul do Arquipélago dos Açores, pela importância para a pesca.
No mar dos Açores estudou ainda os grandes abismos oceânicos, como a famosa fossa “Hirondelle”, designada como o seu iate, sendo a mais profunda do Atlântico e situando-se entre as Ilhas de S. Jorge e Faial do Arquipélago açoriano.
Durante os referidos anos, em que o príncipe Alberto navegou no mar dos Açores, teve a oportunidade de fazer amizades no Arquipélago, nomeadamente na Ilha de São Miguel. Entre os seus amigos açorianos, incluía-se o conde de Fonte Bella, Jacinto da Silveira de Andrade de Albuquerque Gago da Camara, que o costumava acompanhar, seguindo a bordo do seu iate ”Áquila”. Este era uma das maiores escunas portuguesas, com dois mastros, medindo 30 metros e deslocando 130 toneladas. Fora construído nos estaleiros de Ponta Delgada, na Ilha supracitada. Dispunha de uma decoração interior requintada e também de um laboratório. O “Áquila” entrara ao longo dos seus mais de 20 anos de existência não só em campanhas oceanográficas mas também em regatas, sendo quase o único a arvorar e a prestigiar nessas competições o pavilhão de Portugal. A sua deslocação rápida, sulcando as águas com as velas enfunadas e deixando um rasto de espuma, assemelhava-se ao voo de uma águia, daí o seu nome. Era belo de se ver o ”Áquila” fundeado na baía de Cascais, tendo essa imagem sido imortalizada pelo rei D. Carlos numa das suas famosas aguarelas.
O príncipe Alberto de Mónaco rodeou-se também de uma equipa de cientistas de renome internacional, entre os quais, muito admirava, pelo seu saber e competência, um perito em Ciências Naturais, açoriano da Ilha de São Miguel, o coronel Francisco Afonso de Chaves, que fundou o Instituto de Meteorologia de Ponta Delgada. Este Instituto ostenta, ainda hoje, o seu nome.
As fotos dessas campanhas do príncipe Alberto acompanhado pelo conde de Fonte Bella e pelo coronel Francisco Afonso de Chaves, no mar dos Açores e em pleno oceano Atlântico, encontram-se presentemente expostas ao público no Museu Oceanográfico de Monte Carlo, criado no Mónaco, em 1910.
Dessa relação amistosa luso-monegasca perdura o nome de Açores numa das ruas centrais de Monte Carlo e, por sua vez, o de Avenida Príncipe Alberto de Mónaco, em Ponta Delgada, Ilha de São Miguel, e Observatório Príncipe Alberto de Mónaco, na Horta, Ilha do Faial.
Em 1996, Portugal e o Mónaco celebraram conjuntamente o centenário da Oceanografia, prestando as devidas homenagens aos dois “Monarcas Sábios” que muito contribuíram para desvendar os segredos dos oceanos e mares da superfície aos abismos, neles procurando não só a origem da vida e a riqueza da biodiversidade marinha, como também as possibilidades de sobrevivência de náufragos e a previsão de tempestades em prol de uma navegação segura.
Assim, Carlos I de Portugal e Alberto I de Mónaco fundaram a Oceanografia e com ela abriram à Humanidade a última fronteira do Planeta, os Oceanos.
Sem comentários:
Enviar um comentário