Por Isabel Soares de Albergaria
Há dias passei na rua da Misericórdia e apercebi-me de obras vultuosas na casa de São Bento, uma das últimas casas nobres do século XVII que resistiam na cidade de Ponta Delgada. Alertada pela dimensão das máquinas que operavam através de uma enorme abertura que entretanto tinha sido rasgada na fachada, dirigi-me à Câmara no intuito de procurar informações junto do responsável pelas obras daquela zona da cidade. Da conversa obtive como garantia que o projecto licenciado pela autarquia obrigava à manutenção da fachada, embora previsse uma completa destruição do interior, além do acrescento de mais um piso que se assumia na sua linguagem actual. Achei mal. Como? Só a fachada? Uma casa documentadamente do século XVII, que conservava em estado razoavelmente intactos os espaços e a lógica da distribuição interior, além de uma magnífica cozinha lajeada com lar aberto por dois arcos e armários de pedra nas paredes? Não seria possível exigir um mínimo de sensibilidade que garantisse a manutenção do carácter do edifício?! Parecia-me absurdo, também, que esse não fosse o entendimento dos serviços técnicos da Câmara. E era. Mas só o entendimento, porque tudo o resto joga a desfavor. O edifício em causa não estava classificado, logo, não merecia a menor consideração e respeito! O PDM não prevê qualquer medida de salvaguarda para os edifícios históricos, mencionando apenas os limites de índice de ocupação! Índices de ocupação! Mas a tanto se reduz a arquitectura? Infelizmente, este entendimento absurdo de que mantendo a fachada se está a conservar o edifício é muito mais difundido do que poderíamos pensar. No senso comum parece ter-se instalado a ideia de que a acção de conservação do património deve limitar-se à manutenção do frontispício, sendo absolutamente legítimo alterar os interiores à vontade do freguês. Vejamos: ou há valor e interesse no edifício e nesse caso deve ser mantido com a integridade possível (mesmo admitindo que tenha que ser parcialmente alterado, adaptado e ajustado à nova função), ou pura e simplesmente não tem interesse e nesse caso deve dar lugar a um novo. O que não pode é confundir-se o edifício com a sua fachada. Ela não é mais do que o seu rosto. Mantê-la para lhe destruir o corpo inteiro faz lembrar aqueles jogos em que se combinam diferentes corpos em várias cabeças. O jogo diverte, mas pelo lado do insólito e da farsa! A casa de São Bento na Rua da Misericórdia tinha um rosto um pouco desfigurado, é certo! Faltava-lhe já a ermida que o Pe. João Borges da Câmara (1654-1705) mandara erguer à ilharga da sua casa de moradia em 1671. A ermida dedicada a São Bento encontrava-se em 1699 “bem paramentada do necessário para o culto divino”; depois do período liberal foi profanada, e na década de 20 ou 30 do século XX demolida por António Manuel de Vasconcelos. Os últimos 50 anos acrescentaram novas feridas graves a esse rosto um tanto maltratado, como o rasgamento de extensos vãos no rés-do-chão que lhe alteraram a regularidade rítmica dos vãos e as relações métricas entre cheios e vazios. Mas ainda que desfigurada na sua fachada, a casa de São Bento permanecia como testemunho histórico. História longa de mais de três séculos, tendo conhecido épocas prósperas e outras menos prósperas. Reza a tradição que esta casa teria sido a primeira da cidade de Ponta Delgada a ter vidros nas janelas! Sinal de grande abastança e conforto se comparado com os postigos pequenos com grades de madeira que usualmente tapavam as janelas das casas. Exibia além disso a gramática decorativa própria do que Luís Bernardo Leite Ataíde chamava o “estilo micaelense”. Desde meados do século XVIII, na posse sempre da família Medeiros da Câmara (antepassados do visconde e marquês da Praia), a casa foi arrendada a mercadores de grosso trato, que a viam como exemplo de uma casa nobre. É o caso de Joaquim da Costa Barradas, contratador do tabaco e, no início de 1800, de António José de Vasconcelos, seu sucessor no estanco do tabaco e grande comerciante originário da ilha Terceira. Nos séculos XIX e XX recebeu outros inquilinos, abrigou muitas outras famílias. Hoje a casa de São Bento já não pode contar mais histórias, calaram-se os segredos das suas paredes. Perante o facto consumado só espero que duas coisas aconteçam: 1- que apesar de tudo, a empresa construtora seja compelida a pagar a respectiva multa por desrespeito sumário do projecto que entregou e licenciou na Câmara. A não ser assim estaria a dar-se um sinal claro de que o crime compensa; 2-que a Câmara exija o desenho de uma nova fachada condizente com o novo edifício que tem por detrás. O que não deve, não pode acontecer, é a mascarada que tem grassado por esta cidade de fachadas fingidas em que nada, absolutamente nada, é autêntico, a não ser duas ou três pedras de cantaria lavradas. Não faz qualquer sentido sustentar uma arquitectura cenário para contento das falsas consciências do decoro e decência histórico-patrimonial. Não serve para nada este faz-de-conta em que tudo está errado: erradas as proporções, os materiais, a espessura da parede. E acima de tudo, perdido o sentido. Em conclusão, gostava só de deixar esta ideia: nem todo o edificado de um centro histórico como o de Ponta Delgada tem que ser mantido. Muitos dos seus edifícios não têm carácter histórico ou arquitectónico que mereça a sua conservação, desde que uma arquitectura qualificada os venha substituir. Por outro lado, nos casos em que se justifique o cuidado pela manutenção, é preciso entender o edifício como um todo, o corpo inteiro e não apenas um rosto.
Texto publicado pela Drª Isabel Soares de Albergaria no Jornal Açoriano Oriental de 05-02-2011
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